segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Mem�ria Preservada | Prazeres da Mesa

Mem�ria Preservada | Prazeres da Mesa

Memória Preservada

Com os olhos voltados para a Europa, jornalista suíço indica e comenta os livros mais importantes da história da gastronomia

Por Marta Barbosa
Foto Ricardo D’Angelo

Entre o público gourmet, um livro de receitas é uma preciosidade. Ali está um registro de memória de uma família, de uma comunidade e, numa escala maior, de um povo. Mas nem sempre foi assim. Na Idade Média, eram obras de uso muito restrito. No século XIX, quando os franceses pós-Revolução entenderam que gastronomia era um programa para todas as classes, e não só para a nobreza, esses livros deixaram de ser unicamente escritos por mulheres, e para mulheres, e ganharam o grande público. Até chegar aos megaprojetos gráficos com verdadeiras monografias artísticas, como o catálogo de Ferran Adrià, atualizado anualmente. Todo esse percurso da literatura gastronômica está registrado e comentado no livro Clássicos da Literatura Culinária – Os mais Importantes Livros da História da Gastronomia, do jornalista e doutor em história Rudolf Trefzer, da Editora Senac. No Brasil para o lançamento do título, o suíço falou para PRAZERES DA MESA sobre o passado e o futuro da profissão de cozinheiro.

Prazeres da Mesa – Quantos livros você leu para chegar a essa lista?
Rudolf Trefzer - Li o dobro, uns 30, talvez um pouco mais. Mas os critérios eram muito claros: o livro precisava ter sido muito difundido em sua época, e acima de tudo de interesse profissional. Claro que a partir do século XX, essas publicações ganharam uma atenção mais ampla, e não só cozinheiros se interessam por receitas. Meu trabalho começou quando escrevi artigos sobre oito livros que marcaram a história da comida no mundo.

Ao longo da história, que fatores influem na relação do cozinheiro com os produtos que leva à panela?
O preço dos produtos sempre foi determinante para o que se leva à mesa. Na Idade Média, as especiarias eram muito caras e ter acesso a elas era uma forma de distinção social. Hoje, com especiarias em abundância na Europa, a cozinha francesa quase não as utiliza. Há também a questão da quantidade. Trufa e caviar sempre foram raros, portanto caros e finos.

Quando o cozinheiro passou a se preocupar com o meio ambiente?
Até o século XIX, com o início do processo de industrialização, não existia essa preocupação. Para você ter ideia, na França, só no século XVII começou-se a plantar legumes. Antes disso, conceitos como alimentação saudável e respeito à natureza simplesmente não existiam. Imagine que até o século XVIII cientistas europeus acreditavam na existência de dragões nas montanhas!

Sua pesquisa vai até o ano de 2004. De lá para cá, algum título o chamou a atenção e entraria numa segunda edição do livro?
Viajo muito e estou sempre muito curioso não só em relação ao que se publica sobre comida, mas ao que se come. Mas não há nada novo desde 2004. Há sempre uma nova tendência, as cozinhas regionais que se revezam no centro das atenções, mas nada que se possa enxergar como um rompimento com o passado.

A gastronomia sempre foi ditada pela elite?
A elite abre o caminho com os modelos e os ideais. Historicamente a burguesia tenta imitar os modelos dos nobres, com menos recursos. O açúcar foi raro na Europa. Com o tempo a produção cresceu e, no século XIX, foi desenvolvido o açúcar de beterraba. Só aí os doces se tornaram acessíveis. Claro que também existe o contrário: alimentos populares que ganharam as mesas mais finas, e o melhor exemplo disso é a batata. No final do século XVIII, houve uma campanha para aumentar o consumo do tubérculo por questões nutricionais. No século seguinte, virou um alimento comum a todas as classes, que Escoffier ajudou a tornar chique.

E o que você enxerga como futuro?
Noto um movimento geral de valorização da comida simples, como ocorre com os miúdos, que estão sendo revalorizados. Há também uma grande curiosidade dos cozinheiros atuais pelo uso de todos os alimentos que têm ao alcance. E isso é bom.

Mudou muito a imagem do cozinheiro ao longo da história?
Mudou totalmente. Antes da Revolução Francesa, os cozinheiros eram profissionais contratados por famílias ricas, pelos nobres. Por mais que tivessem reconhecimento, continuavam empregados. No século XIX, o cozinheiro virou empreendedor. Só após a Segunda Guerra Mundial, com o acúmulo de riquezas produzido na Europa, o chef virou artista. A nouvelle cuisine foi um marco disso. Ali se estabeleceu a cozinha autoral.

Você acha que chef de cozinha é artista?
Essa é uma questão difícil. Um artista faz coisas únicas, certo? Pensando assim, acho que não. Sempre houve bons imitadores na cozinha, que não podem ser desprezados. Mas, de certa forma, produzir comida é um ato criativo. Afinal estamos falando de um trabalho de transformar uma coisa em outra. Ferran Adrià faz uma comida show.

Você enxerga o movimento causado por Ferran Adrià como uma continuação da nouvelle cuisine?
Adrià demonstra uma tendência de destacar o paladar e as sensações em relação aos produtos. Antes de Adrià, a nutrição tinha mais importância. Mas o que ele fez no início da carreira foi uma nouvelle cuisine espanhola, escola com a qual rompeu depois.

E como você entende essa supervalorização do cozinheiro como profissão?
Acho que é momentâneo. Tudo o que é novo faz muita fumaça. É bom hoje, mas em 20 anos não será tanto. Acho um pouco ridículo uma lista com os melhores restaurantes do mundo. Isso não é importante, nem há critério que possa definir com rigor essa relação. Há um exagero em torno da profissão de cozinheiro.

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